Olindamente esquecida


Ilustração: Zé Som

Quando eu era criança tocava bastante nas rádios uma música que, apesar da minha pouca idade, me comovia muito, quase como a intuição de um futuro relacionado a uma cidade que seria o meu pouso pouco tempo depois, até os meus dias atuais; praticamente o lugar onde constituí a maior parte das minhas lembranças de vida. Só recentemente descobri que o compositor daquela canção, que tanto me emocionava e que falava da minha querida Olinda, vinha das terras de Cabral e chamava-se Abílio Manoel. Quase fui às lágrimas quando ouvi de novo a canção, após várias décadas, um encontro propiciado pela milagrosa internet, onde quase nada fica oculto.

O tom passado por aquela canção era exatamente o que existia em Olinda, saudosismo e nostalgia, uma calma e uma atmosfera que transportava ao passado quem caminhava em suas velhas e calejadas ruas. Naqueles tempos, Alceu já cantava: “Olinda, tens a paz dos mosteiros da Índia…”. Não era só por sua beleza histórica, mas havia ali um sentimento singular, que me fazia falta sempre que eu deixava a cidade. Era algo que não sabia explicar, mas que talvez viesse do espírito de tantos que deram suas vidas em batalhas travadas em becos e ruas onde hoje, na maior parte do tempo, mora o silêncio. Durante a minha adolescência, observei tantas vezes as belas paisagens a partir do ponto mais alto da cidade, que sempre que pensava em algo bom para fazer, era aquela paisagem que vinha a minha cabeça. Aquelas caminhadas de fim de tarde não tinham preço. O velho e o novo tão próximos e unidos por um oceano repleto de histórias para contar, de onde vieram tantos desbravadores que extraíram tanto desta terra, escreveram histórias de riqueza, exploração, sofrimentos e, no final, deixaram uma mistura de costumes, tradições e sua marca mais forte – a arquitetura de casas e igrejas, uma riqueza que, somada à beleza natural deste pedacinho de terra, faria desta cidade um tesouro turístico, se estivesse localizada em outro país.

Após tantos anos, desde os primeiros momentos de encantos e “namoros” com esta cidade, raramente consigo andar por suas velhas ruas, que hoje, apesar da beleza resistente, carregam o estigma do abandono de vários governos, que nunca tentaram fazer melhor que o antecessor. Como é da nossa cultura, e como era o costume dos colonizadores, estes tentam arrancar um pouco mais e sangrar à exaustão. E passo a passo, deixam morrer os belos traços históricos que contam o nosso passado e estampam o resultado do nosso lamentável presente, no qual ainda não aprendemos a exigir cuidados por aqueles que elegemos para tal tarefa. Todos os dias, quando passo e vejo velhas e belas casas se deteriorando, sinto que parte da minha história vai junto, e não consigo deixar de imaginar o quanto um lugar com um potencial fantástico, que foi patrimônio da humanidade, mas perdeu reconhecimento pela negligência de seus administradores, poderia ser a menina dos olhos do “Leão do Norte”, que aparece para o mundo uma vez por ano, nas festas de Momo. 

E se alguém não consegue enxergar a beleza de que falo, é só ver o quanto esta cidade é cheia de artistas, pois, de tão inspiradora, é o lar de muitas mentes talentosas. Em alguns momentos de lucidez daqueles que tomam conta deste celeiro de cultura, criaram-se pegadas até essas moradias, para abrir caminho a um evento simpático denominado “Olinda arte em toda parte”, que eu costumava prestigiar e da qual me orgulhava, que mostrava que cada recanto desta velha cidade tinha não só história, mas também arte e talento. Ainda nos resta o Mimo, um festival internacional de música que ainda sobrevive, e que foi replicado em outras cidades. Assisti a apresentações inesquecíveis e intimistas nesse festival, que torço para que continue vivo, apesar dos pesares. Enquanto isso, vou deixando aqui a saudade que ainda sinto quando ouço aquela tocante composição de Abílio Manoel, só que agora a saudade é de uma Olinda que conheci.

16/06/2019

Marcas de quem passou



Durante todo o tempo em que vivemos, tantas e tantas pessoas passam por nós, muitas vezes por um breve momento, outras por um período maior, e há aquelas que ficam. Há muito tempo, quando as pessoas se comunicavam apenas por e-mail, recebi um texto falando sobre isso. Foi quando parei pela primeira vez para refletir sobre a importância daqueles que passam por nossas vidas, não raro de forma breve, mas significativa, como se elas tivessem uma missão em relação a nós. Elas não sabem, mas, de alguma forma, se tornam determinantes em nossas vidas, para que sigamos certa trajetória.

Depois que atentei para este fato tão relevante, mas que com frequência não enxergamos, comecei a buscar lá atrás sinais de que alguns desses “missionários” me ajudaram a seguir o meu caminho, e foi uma descoberta, que fez todo o sentido para mim. Percebi que pude transpor fases da minha vida ou acontecimentos consideráveis, porque essas pessoas cruzaram o meu caminho. É claro que a função de algumas delas é exatamente essa, como os nossos professores, que podem nos direcionar ou mesmo atrasar a nossa caminhada. Mas aqueles que mais chamam a minha atenção são os que ajudam a superar obstáculos ou que deixam algum tipo de ensinamento, sem se darem conta disso.

Lembro, por exemplo, que quando estava na faculdade, em um momento de muitas dúvidas e atribulações, tive muita ajuda; colegas surgiram exatamente nos momentos em que mais precisei, para fazer com que aquela etapa fosse transposta. Hoje vejo que foi como se segurassem a minha mão e dissessem: “Vamos, iremos conseguir”. E quando parecia que eu estava no caminho errado, que havia me equivocado em minha escolha, sempre surgia alguém para dar um novo impulso, como um colega que me indicou para um primeiro estágio, quando eu me sentia desestimulada e temerosa pela escolha profissional. E como isso foi sempre muito forte na minha vida, quando comecei lá, um colega de trabalho me ajudou a adquirir conhecimentos que me permitiram conseguir outras oportunidades de estágio, que foram também fundamentais para a minha trajetória profissional. Quando paro para pensar nessas pessoas, vejo que posso fazer uma lista. Não sei se meu anjo da guarda trabalhou duro para colocar essas pessoas no meu caminho, mas só o que vejo hoje é o quanto elas foram pontes para que eu atravessasse para o outro lado, pessoas que apenas passaram pela minha vida e seguiram caminhos outros.

Além daqueles que participam mais efetivamente de nossas vidas, fazendo a diferença, há também os que nos falam coisas que reverberam em nossas mentes de forma tão marcante, que influenciam em decisões importantes ou permeiam atos ou pensamentos, durante toda a nossa existência. Às vezes, uma única frase ou uma história contada por quem acabamos de conhecer fica gravada em nossa memória e em nossos corações. Essa pessoa vai seguir o próprio caminho, sem ter ideia do que deixou dentro de nós, impresso em algum canto da nossa alma. É assim que aqueles que simplesmente passaram permanecem em nossas vidas.

16/05/2019