Estranha partida

Foto: Abigail (joyflowerphotography)

Para uma amiga

A última vez que nos encontramos foi em um encontro de mulheres em busca de crescimento interior. Seria um momento de descontração e de aprendizados sobre nós mesmas. Entretanto, uma vez mais ela viu como uma oportunidade de também reviver um passado não resolvido, de revolver velhas feridas.

Bastava cair em um assunto que a remetesse aos traumas de uma criação dolorosa, para cenas daqueles duros capítulos virem à tona. Era uma vida inteira para relembrar, se entristecer, chorar e até achar graça. Uma bagagem que carregava aonde quer que fosse. Uma vivência contraditória entre risos e lágrimas. Uma natureza alegre, uma gargalhada fácil que contaminava quem a cercava e incomodava os não afeitos a esse tipo de expressão positiva.

Quando a conheci na empresa em que trabalhava, logo trocamos amabilidades e nos afeiçoamos. Nossos momentos de tensão no trabalho eram compartilhados e uma apoiava a outra. Eram tempos difíceis, quando precisávamos lidar com chefias de egos inflados e situações de assédios morais. Tenho a convicção de que suportei tais experiências, porque nos piores momentos suas palavras de apoio eram o impulso de que precisava para sair do estado mental em que era jogada a cada episódio depreciativo.

Ela, por seu lado, também sofria suas injúrias como no dia no qual que seu chefe a proibiu de liberar sua risada descontraída no ambiente laboral. Ele a convocou para uma conversa na sala de reunião ao lado da minha. Do meu birô, pude ouvir o choro da minha amiga ao receber aquela ordem descabida. A princípio, fiquei penalizada ao perceber o efeito daquela determinação, mas depois a convenci de fazer daquilo um motivo para rirmos ainda mais. Afinal o chefe era um líder de atitudes incoerentes e, por vezes, dissonantes do cargo que ocupava, como cochilar em reuniões importantes.

Em nossas conversas no horário do almoço, refeição que fazíamos juntas, me divertia com suas histórias de vida, cheias de desventuras. Ela foi a única pessoa que conheci capaz de rir e chorar de uma mesma história, depois de contá-la com exageros e tudo o mais.

Apesar dos pesares do dia a dia na empresa, tivemos momentos divertidos em que fazíamos um trabalho juntas para atendimento externo, fora do nosso ambiente diário. Foram inúmeros almoços ao lado de outros colegas de uma equipe que nos apoiava tecnicamente. Dávamos boas risadas caçoando uns dos outros quando o contexto criava a oportunidade.

Foram seis anos de convivência na empresa. Nesse período, acompanhei o crescimento dos filhos dela ao saírem da adolescência para a vida universitária, bem como os problemas de uma mãe para lidar com essa transição. Testemunhei o seu extremo amor aos filhos e ao marido com o qual viveu uma história permeada de peculiaridades. Além disso, vi de perto o quanto era uma pessoa na qual as emoções estavam sempre à flor da pele e em níveis que beiravam os extremos. Tudo tão exacerbado! Não era uma novidade quando ela somatizava as ocasiões em que a vida lhe colocava à prova. Volta e meia estava no departamento médico. O remédio: quando não recebia um ansiolítico, simplesmente era encaminhada para repouso na enfermaria.

Quando saí da empresa mantivemos a amizade. Nos encontramos algumas poucas vezes a fim de colocar as conversas em dia, mas quando isso não era possível, falávamos por telefone ou via mensagens. No nosso último encontro, pude perceber o quanto ainda vivia assombrada pela traumatizante criação recebida de uma mãe que rejeitava alguns de seus filhos. Tentei ajudá-la, alertando-a de que precisava cuidar para espantar esse fantasma do passado. No entanto, já era muito tarde. O mal já estava feito. O constante sofrimento ao qual se condenou, minou sua vida e saúde.

De repente, minhas mensagens para ela começaram a não ter retorno. Não tinha outra forma de nos comunicarmos e quase dois anos depois da última resposta, fui contactada por sua filha. Ela me contou que a mãe que ela possuía praticamente havia partido. Em seu lugar pousara um espírito triste, estranho, dependente e muitas vezes ausente. Era apenas um corpo quase sem memória que gradativamente desaprende, como uma fita que vai sendo apagada do fim para o começo.  Agora um Alzheimer comandava aquele corpo e alma. Se antes era cheio de emoção, vida, energia, personalidade, após a doença, apenas um olhar distante parece habitá-lo, falando tudo por si só.

Foi um choque receber essa notícia. Tive a sensação de um luto. Sabia que havia perdido a minha amiga. Sem que pudéssemos nos despedir, seu espírito partiu e hoje sou uma vaga lembrança para ela. Queria muito ter lhe dito o quanto foi importante para mim e lhe falar de coisas minhas as quais tenho certeza de que a deixariam feliz. Fiz isso por uma vídeo chamada em uma janela de relativa lucidez dela. Foi como se ela visse uma velha e boa conhecida. Esboçou um sorriso distante, lembrou que eu significava algo de bom para ela e me devolveu um beijo que lhe transmiti. Ela ficava genuinamente feliz com as minhas conquistas. Era alguém com quem eu podia brincar livremente, sempre reagindo com uma divertida risada ou um sorriso meigo, pois era como me tratava.

Saudades de você amiga! E onde quer que sua consciência esteja, sinta a boa energia a qual fluía entre nós. Em sua última mensagem para mim, você deixou registrada a falta que sentia da nossa convivência e que seríamos amigas para sempre. Sim. Seremos.

29/02/2024