Querida Tia

Essa semana seria o aniversário da minha querida Tia Marlene, se ela estivesse entre nós. Quase 6 anos depois de sua partida, a saudade ainda é a mesma, então para sentir um pouco da sua presença, resolvi compartilhar um texto que escrevi sobre ela:


Essa vida é um degredo de grande perversidade, o tempo vai passando, a coisa vai piorando e nada se resolve”. Essa era uma das frases que a minha tia costumava dizer, intensa como ela, tanto na dor, como no humor. Mas, se parece que ela falava isso com pesar, ledo engano, porque era puro humor. Pois assim era a minha tia, dois extremos de um mesmo ser. Se a vida era dura e cruel por um lado, por outro tudo podia se transformar numa grande piada.

Lembro que no passado o meu primo sofreu um assalto, daqueles que até o tênis o ladrão fez questão de levar, e ainda deu-lhe uma bofetada por ter escondido dinheiro no calçado. Porém, este incidente ao invés de se tornar um trauma na vida daquele cristão, se transformou numa inacreditável piada ao ser narrado pela minha tia, pois sua maneira peculiar de contar a história tornava os detalhes hilariantes e, ainda valia florear um pouco aqui e ali pra deixar o negócio ainda mais engraçado, coisa que meu primo protestava relutante: “não foi assim” e ela prontamente contra-atacava: “foi”, e caia na risada, encerrando a sua versão dos fatos, deixando por conta do ouvinte o benefício da dúvida.

Minha mãe costumava nos contar as diabruras que minha tia aprontava na adolescência, no tempo em que se comportar mal na escola era pecado mortal punido severamente na instituição e, às vezes, em casa também, para que não houvesse risco de que a lição não fosse aprendida, porém mesmo assim, não havia “disciplina militar” que a intimidasse, depois ela pensava nas consequências. E assim foi no dia em que ela teve a “brilhante” ideia de colocar no lugar do apagador um absorvente. É claro que após o professor tentar apagar o quadro com o estranho artefato e, se dar conta do que portava em sua mão, a fúria resultante do feito audacioso transformou-se numa sucessão de ameaças, que nem ela nem as colegas tiveram coragem de fazer qualquer declaração à respeito, considerando o tamanho do castigo que estaria por vir. Dessa ela escapou, mas nem sempre o final era feliz, ou pelo menos pouco infeliz.

Mas se havia um personagem que era o alvo predileto de suas “exageradas” histórias e imitações, este era o meu tio, que possuia um talento nato para atos impensáveis, suas escorregadelas fazia dele um poço de munição para as incontáveis histórias que a minha tia sempre procurava guardar em suas lembranças para me contar assim que a oportunidade surgisse, coisa que havíamos planejado pouco antes de sua partida desse mundo.

E apesar da saudade que ainda sinto com a sua partida repentina, agradeço a Deus por ter sido rápida e suave, como ela pensou um dia. Com certeza se ela pudesse comentar sobre o próprio enterro, encontraria algo para contar com a graça que só ela conseguia captar em meio às tragédias. Como no dia do velório da minha mãe, que apesar da tristeza que sentia pela perda da irmã, minha tia não conseguiu perder a piada quando entrou no velório errado e ficou rezando sem perceber o engano, quando começou a se dar conta de que não conhecia ninguém e ao perguntar o nome da falecida, saiu disfarçadamente e já guardou a piada para me contar após o término da cerimônia. E assim era a minha querida tia, espirituosa e cheia de personalidade, “pau pra toda obra”, batalhadora e ao mesmo tempo uma contadora de histórias ao estilo “Comédia da vida privada”. Mas pensando no que ela diria sobre as suas desventuras, sou capaz de ouví-la dizendo: “minha filha, só Jesus na cruz para nos salvar! “, seguida de uma bela risada.

Descobertas de um ano que quase não aconteceu



O ano de 2020 começou bem para mim, fiz uma das viagem que sonhei um dia e mesmo no final sendo atingida de raspão pela pandemia, deu para conhecer quase tudo que estava na programação. Assim como todos, eu também não imaginava o que estava por vir. O ano parecia que seguiria não com boas perspectivas, posto que para o brasileiro que enxerga a real situação do país seria mais um ano de resistência, porém dentro de parâmetros já conhecidos. Afinal não imaginávamos que viveríamos além de tempos estranhos para nós, tempos incomuns também para o resto da humanidade.

O fato de termos que permanecer confinados trouxe muitas mudanças, se olharmos para o ano como algo que não aconteceu, por outro lado essa ausência aparente de materialidade desse período gerou muitos caminhos alternativos, acho que a palavra do ano foi reinventar. Se não dava para ser do jeito que sempre foi, a solução foi criar algo novo a partir de si mesmo, pois o tempo não para mesmo que a vida pareça paralisada. Não é porque não podíamos ir para a rua que as nossas necessidades cessariam, precisávamos supri-las de alguma forma.

Ficar em casa teve seu ônus, mas também teve seu bônus. Da telinha dos nossos aparelhos móveis assistimos as transformações daqueles que buscaram soluções onde parecia que não havia um caminho, vimos através das inúmeras lives de todas as naturezas as pessoas se reinventando, se adaptando e buscando sua sobrevivência e de tantos outros, pois a solidariedade também se fez presente nessa nova vertente, e os que não tiveram a oportunidade de se manter ou de transformar a sua realidade, também foram ajudados.

Nesse cenário eu mesma descobri escritores que não conhecia, reencontrei a poesia, que foi minha primeira forma de expressão e, hoje sinto que estamos numa fase de “paquera” em que estou só olhando de longe e me enamorando, vivi experiências que não teria vivido em um ano “normal”, me dediquei a novos hábitos, descobri algo de bom que poderia extrair da tecnologia através do instagran, participei de dinâmicas virtuais onde o foco era buscar um maior equilíbrio num momento tão adverso, e com isso encontrei pessoas de muito talento e de muita substância, contrariando a realidade política do país, sustentada por um vazio humanístico. Essas pessoas trazem esperança, colocam uma luz no fim do túnel e trazem à convivência o humano, os valores reais, a dignidade perdida, o que realmente importa.

No balanço do que vivemos ou não nesse ano, tivemos uma corrente paralela que buscou despertar o melhor das pessoas, que trabalhou arduamente para dar um sentido a tudo isso, que tentou mostrar o significado do que tivemos que viver, que apresentou as oportunidades e possibilidades advindas de uma reflexão que jamais teríamos. Até a natureza silenciosamente gritou para nós, o seu grito de alívio, de uma pausa de tanta agressão feita pelo homem, então se isso não foi para nos dizer nada, qual seria o sentido dessa experiência? Acredito que uma boa parte da humanidade se fez essa pergunta. E só o fato dela ter povoado a mente dos humanos, creio que já foi uma grande descoberta, sobre o quê? Sobre existir e sobreviver num mundo onde o outro parecia não importar, e agora as pessoas acordaram para perceber o quanto é difícil vivermos socialmente distantes, o quanto precisamos uns dos outros, que não há sentido jogar num estádio vazio ou fazer nossas comemorações sozinhos, pois queremos partilhar, a grande diferença é: que nesse momento além da necessidade, temos a certeza disso, e essa talvez tenha sido a nossa maior descoberta.

A contradição de tudo isso é num ano seguinte, parte da população do país entregar-se a negação de uma futura explosão da pandemia, promovendo um comportamento suicida em escala, levando-nos de volta ao começo. O resultado é que o tempo tem nos mostrado que se uns têm crescido com essa espécie de provação, outros têm sucumbido ao lado sombrio de seus valores, e para esses, o ano de 2021 poderá vir a ser mais um ano que não aconteceu.

05/03/2021