O sapateiro surtado

 

Foto: Ryan Snaadt

Nem sempre por ser tempo de Natal os espíritos ficam apaziguados. Isso pode até ser motivo para recrudescer os sentimentos a ponto de se tornarem opostos ao que se espera nessa época. Pode até parecer uma contradição, e não deixa de ser, mas ao mesmo tempo faz sentido, quando essa data traz consigo pressões ou situações acima do limite de quem as vive. Nunca havia pensado sob esse ângulo até o dia em que pedi ao meu marido para ir buscar um par de sapatos que havia levado para consertar.

Estávamos a duas semanas do Natal, quando levei os sapatos para serem reparados. Havia tempo de sobra e a previsão era de o sapateiro entregá-los três dias depois. Resolvi esperar oito dias, dando-lhe mais tempo para terminar o serviço. Ainda faltava o mesmo período para as festas, quando meu marido, que já era um cliente habitual do sapateiro, foi buscá-los. Ao chegar lá, tamanho foi o susto ao ser recebido como um estranho e ser questionado por estar indo pegar um par de sapatos de mulher. Fora de si, além de se revoltar com o cliente, aproveitou para xingar as pessoas que levaram sapatos perto do Natal e queriam que ficassem prontos a tempo. Revirou seu espaço de trabalho. Como não localizou meus sapatos, ficou ainda mais enfurecido, e mandou meu marido me dizer que fosse a uma outra sapataria comprar um sapato novo.

Ao tomar conhecimento do ocorrido, a princípio, fiquei sem saber o que pensar, considerando que já havíamos nos utilizado tantas vezes dos serviços daquela pessoa. Entretanto, após pensar e repensar sobre a possibilidade de ser um caso de uso de drogas (uma hipótese real), passei a admitir a ideia de que foi um caso de surto de alguém que se sobrecarregou com trabalhos, dos quais não poderia dar conta. Além disso, quando percebeu que era extremamente desorganizado, decidiu lançar a culpa sobre os clientes.

O Natal costuma fazer bem para a maioria das pessoas e isso é fato. No entanto, existem sempre aqueles que não enxergam as oportunidades desse momento e, ao invés de luz, encontram a escuridão. Em geral, isso acontece quando esse contexto traz consigo algum tipo de peso. Assim como algumas pessoas entram em conflito consigo mesmas pelas reflexões que fazem, quando chega o final do ano, existem as que chegam a se desesperar por se aperceberem da condição em que se encontram.

Creio que o sapateiro caiu em sombras e naquele momento, tudo o que viu foram nuvens de fumaça. Deixei passar as festas de final de ano e voltei à sapataria. Calmo e restabelecido, com a minha ajuda, encontrou meus sapatos, consertando-os na mesma hora. Disse-lhe que iria tomar um café em uma padaria próxima dali para deixá-lo à vontade. Quando retornei, o serviço estava terminado. Sem fazer referência ao desatino passado, paguei, agradeci e cada um continuou seu caminho, dessa vez sem surtos ou traumas. É claro que meu marido vai precisar de um tempo para relevar os maus tratos que recebeu, e não sabemos se um dia voltaremos a usar os serviços dessa pessoa.


11/03/2023