Não inventa!

Baião sem invencionices
 

Cozinhar foi algo que aprendi cedo. Comecei com bolos, depois, sobremesas, até que cheguei nos pratos para almoço. Primeiro, coisas simples, evoluindo para as receitas especiais de final de semana, quando a família podia almoçar junta.

Foi assim até me casar e meu marido mostrar seus dotes culinários, além de agilidade na cozinha. Nesse caso, o deixei à vontade para exercer essa função, já que lhe dava prazer e seria algo de grande ajuda para a vida de uma esposa multitarefa.

Ele começou aos poucos e foi se aprimorando. Como um bom cearense, aprecia um baião de dois e apresentou à minha família e a mim esse prato prático e gostoso. Logo, todos corroboraram a preferência por essa receita e ela se tornou tradicional em nossa casa.

Embora o prato seja essencialmente preparado com feijão e arroz, o modo como essa junção é realizada e de acordo com a escolha dos aditivos para dar sabor, o resultado pode variar bastante. Após anos, compondo essa receita e pesquisando os vários métodos de seu preparo, ele finalmente chegou a um sabor, o qual elegemos como sendo o ideal. Como ele é o tipo do cozinheiro que gosta de experimentar variações, volta e meia testava algo diferente, mesmo tendo encontrado o sabor que passou a ser o nosso favorito.

Confesso que, quando ele fazia esses testes, eu ficava brava e o questionava a respeito. Até que um dia decidi resolver a questão e aí, quando pedia para que fizesse o baião, já ia logo botando ordem na casa: "Não inventa! Nada de fazer experimentos!". Essa foi a forma de garantir que nossos almoços tivessem o sabor esperado e sem surpresas.

Depois que adotei esta prática, percebi que ela também poderia ser aplicada para outras comidas. E assim foi para o arroz carreteiro e o pudim de leite, outras vítimas dos experimentos. Só lamento não ter conseguido salvar um delicioso bolo de banana, que ele começou a fazer e sempre dava certo. Essa, depois de tanto inventar, perdeu a receita original. As novas, que conseguiu na Internet tiveram resultados ruins. Não foram aprovadas para serem promovidas ao caderno onde ficam as que costumamos fazer. Uma lição para o meu chef caseiro, o qual se tornou um cozinheiro mais cuidadoso e um cientista menos impulsivo na cozinha.


08/12/2023

Limitando o outro

 

Foto: Ifrah Akhter

 

Uma das características degradantes do ser humano é a capacidade de limitar o outro para satisfazer suas próprias necessidades, caprichos, desejos ou o instinto controlador. Isto se aplica, principalmente, aos homens em relação às mulheres. Desde que o mundo é mundo, pessoas se consideram superiores, impondo normas e comportamentos, os quais nada acrescentam à vida.

Muitas regiões do planeta, por meio de crenças religiosas, por exemplo, ditam vestimentas e comportamentos, especialmente para as mulheres, com o intuito de atender a regras criadas e mantidas por homens. Estes pouco se importam se os seres subjugados sofrem com isso ou têm suas vidas podadas. Assistindo às competições nas Olimpíadas passadas, fiquei imaginando quantas mulheres são impedidas de participar de vários esportes, pois não poderiam mostrar as formas de seus corpos. Então como teriam liberdade de movimentos com um monte de panos em cima delas?

É muito fácil impor comportamentos para o outro cumprir. Da mesma forma, traçar caminhos para um terceiro seguir, como escolher cônjuges e articular casamentos, são, igualmente, maléficos. Muitas vezes, a vítima até incentiva práticas sofridas por ela mesma, fato comum em mulheres que absorvem culturas machistas impostas. Mães ou sogras, por vezes, até ajudam a perpetuar antigos costumes limitantes, fazendo outras gerações pagarem por terem de viver sob antigas práticas, as quais não se encaixam em um mundo evoluído. Em muitos lugares, ainda se vive como na Idade Média, consequentemente, os conflitos entre os seus iguais ou com outros países não cessam.

As ditaduras são o maior exemplo de imposição de comportamentos, criados por seres humanos ou sistemas, para exercício do controle. É difícil compreender como podemos existir na terra, há milhares de anos, e sermos tão involuídos. Quanto mais a tecnologia se desenvolve, parece que o ser humano vai na contramão desse desenvolvimento. Acaba se utilizando do crescimento da inteligência para controlar ainda mais o outro.

É mesmo lamentável estarmos, aparentemente, inclinados a escravizar o espírito e o corpo uns dos outros. Afinal, mesmo nos países mais evoluídos, encontramos mentes retrógradas entregues ao instinto de superioridade e, principalmente, ao machismo. Fatores estes os quais são limitadores comuns e, ainda, cultivados por muitos. A esperança, entretanto, por um cenário mais positivo, apesar de toda essa realidade, é que felizmente, existem oásis evolutivos onde vive o respeito às simples liberdades básicas e moram os que resistem. Mas é preciso manter a  vigilância porque os controladores não dormem.  A história mostra que eles estão sempre à espera de uma oportunidade para se insurgirem. Então a luta pelas pequenas e grandes liberdades não cessa, afinal ninguém quer carregar os pesos das amarras desnecessárias. Sigamos de olhos abertos!

04/11/2023

A vida na boca alheia

 

Foto: Ben White

Por que o ser humano nutre a necessidade de falar do próximo? Imagino as mais diversas motivações para isso: curiosidade, inveja, distração, algo para esquecer a própria vida ou realidade. Dispor da vida alheia parece ser uma característica comum em qualquer lugar do planeta. É possível que os especialistas tenham uma boa explicação sobre a verdadeira causa, mas no geral o que tenho ouvido dessas mesmas bocas é simplesmente porque gostam. E os que divergem a respeito que lutem para entender.

É impressionante a atração ou mesmo fetiche pela vida privada do outro. Algo tão gritante, a ponto de matar, a exemplo do acidente com a princesa Diana. O nível de interesse pela intimidade da vida dos membros da família real inglesa, por exemplo, é berrante e sem limites. É fácil perceber isso quando pensamos nos tabloides ingleses e americanos ou nos paparazzi, espécie de ampliadores dessa prática. Estão por toda parte onde possam existir celebridades para bisbilhotar o presente e passado dessas, e espalhar para o mundo. É claro que isso serve também para saciar a sede dos fãs de saber sobre seus ídolos. É até compreensível querermos conhecer mais sobre os famosos, entretanto não é aceitável alguém os perseguir para capturar flagrantes de suas intimidades. Em geral, eles mesmos contam o suficiente sobre suas vidas em entrevistas ou até fazem suas biografias.

Com toda essa gana por uma novidade divulgada em um boca a boca sem filtro, sem uma avaliação da notícia ouvida, essa cultura se tornou um terreno fértil para as fake news. Infelizmente, esse mal se espalhou pelo planeta e se tornou uma arma. Nas mãos daqueles que perceberam como poderiam utilizar o seu poder, foi um instrumento para destruir pessoas e verdades e, em seu lugar, erguer impérios de mentiras.

Desde muito jovem tendo a ficar desconfortável com conversas, girando em torno da vida do outro ou tratando de julgamentos. Nunca sabemos nem conhecemos, de fato, o cerne das questões de cada um, então é um equívoco tirar conclusões baseadas em impressões externas e superficiais.

Em tempos antigos, o poder da língua alheia ditava o destino e o comportamento das pessoas. As mulheres costumavam ser as maiores vítimas, mas também tinham a sua participação na questão. Elas não poderiam ter certos comportamentos, porque ficariam mal faladas. Se fizessem algo contrário aos padrões da época, logo se tornavam alvos fáceis de uma sociedade contaminada pelo jugo e pela difamação. Em muitos casos, deveriam casar ou fazer coisas escondidas para não cair na "falação", como se costumava dizer. O resultado de tudo isso era viver em torno da opinião das pessoas ou das aparências, uma conduta que permeou muitas épocas e persiste ainda em diversos lugares.

No fim não percebemos o quanto essa dependência de um parecer do outro gera medos. É comum as pessoas se sentirem vulneráveis ante a posição de terceiros e isso causar recuos ou mesmo paralisá-las. Esse mal afeta a maioria, a ponto de ser alvo de estudos e pesquisas. Então é preciso ter discernimento para não dar poder aos faladores, disseminadores de mentiras ou olheiros da vida alheia. Além disso, cabe a cada um de nós não alimentar essa prática, por mais comum que ela possa parecer.

07/10/2023

O gosto eclético dos domingos

Lendo uma crônica de um grande compositor, me transportei para os finais de semana musicais na minha casa. Foi um período que atravessou a minha infância e se estendeu até o início da juventude. Eram muito comuns as sessões de música, primeiro com os LPs, depois com os CDs.

Em geral, quando a família não ia para alguma praia, a programação era musical. Meu pai adorava as novidades do momento e o que havia nas paradas de sucesso, mantendo-se antenado com os lançamentos. Era a época áurea da MPB e o início das carreiras dos roqueiros antológicos, incluindo as bandas. Nesse contexto despontavam artistas como Elton John, Rod Stewart, Steve Wonder, Peter Frampton e grupos como Queen, Kiss e Bee Gees.

Os lançamentos eram uma sensação. Costumávamos dizer que os ouvíamos até furar. Meu pai tinha um gosto eclético, então, volta e meia, dava seus pulos no passado e sacava um Nelson Gonçalves ou antigos LPs de Roberto Carlos. No meio desse passeio pela música brasileira, também pinçava um Benito di Paula, que não era lá muito do meu agrado particular, assim como seus admirados de outrora. Desconfio que a escolha desse repertório dependia de um certo estado de ânimo.

O fato é que com o tempo e o crescimento dos filhos, ele foi incorporando o nosso gosto musical e nossos LPs se tornavam seus. Não importava que fossem músicas da nova geração, pois ele gostava de tudo. Então, na maioria dos finais de semana, nos momentos de colocar o velho prato para girar, todos se integravam ao som que preenchia os espaços da nossa casa. Meu pai fazia questão de ter um equipamento de qualidade, porque ele tinha ouvido para música e gostava de ouvir cada instrumento e viver intensamente cada nota.

Isso se tornou tão parte de nós que assim como ele assimilava nossas preferências nessa área, de vez em quando nos pegávamos como simpatizantes de artistas fora de nossas predileções. Coisa do tipo ouvir o sambista Noite Ilustrada e achar bom. Absolutamente fora. Mas ele também nos ensinou a gostar de ícones como Milton Nascimento, Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso e outros mais que fizeram história na MPB.

Em um dos lugares que moramos, havia uma galeria onde abriu uma loja de discos. Foi um sonho para quem cultivava o hábito de colecionar LPs. Nessa fase, ele nos fazia ir lá várias vezes para saber se eles já estavam vendendo um determinado lançamento. Desses tempos, um álbum em particular me marcou, porque acredito que, quando meu pai ouvia as músicas dele, estas penetravam a sua alma. Este álbum foi Elvis Aloha from Hawaii. Quando as cenas desse show foram mostradas, no filme Elvis, estas só me remetiam ao meu pai, ouvindo-o em seus domingos de viagem musical. Sempre em alto e bom som, porque ele precisava mergulhar na potência daquela voz inigualável e carregada de emoção visceral. Se alguém duvida, é só assistir ao filme para entender.

Hoje, se cultivamos ou temos uma determinada inclinação para admirar uma série de artistas desse segmento, com certeza, tem a assinatura dele bem embaixo. E se temos nossas extensas coleções de LPs herdados desse passado ou CDs, DVDs e playlists é porque está gravado em nossas memórias e corações as velhas e ecléticas tardes de domingo. Como diria Roberto Carlos: "velhos tempos, belos dias".

02/09/2023

Voar com a asa quebrada

Foto: Ray Harrington

Existe aquela fase da vida em que se diz estar na idade do "condor". Algo que soa até poético, não fosse a pronúncia não corresponder ao significado da vida real. Apesar do lado trágico, o trocadilho tem sua graça, quando partimos a palavra ao meio.

Estava pensando a respeito disso, após começar a aparecer para mim no Instagram, um perfil só de pessoas com 50 anos ou mais, fazendo coisas divertidas ou joviais. Tudo muito alegre com o objetivo de estimular à vida aqueles que cruzaram a linha imaginária da metade de uma existência centenária.

Embora seja verdade que podemos fazer muito nessa fase, é fato que, em geral, o nosso corpo tem muitas perdas. Se por um lado, hoje temos mais disposição mental, porque somos mais longevos que nossos antepassados, por outro lado, ainda sentimos o consumo dos dias até ali. Se ontem as dores eram ocasionais e em menos tempo era possível demovê-las, agora elas são mais frequentes e duram mais. O surgimento de novos problemas é mais comum e é mais fácil ter uma reação a um alimento inadequado ou à falta de exercícios. As emoções, tanto as positivas quanto as negativas, estão mais à flor da pele. E a lista de remédios só aumenta.

Costumamos dizer que existe a vida só de felicidade do Instagram. É um pouco disso, me parece, que é de onde advém todo esse entusiasmo. É como gostaríamos que acontecesse. Recortes que juntos parecem uma linha contínua de possibilidades. É tudo o que podemos ser e fazer, mas também é quase tudo o que não fazemos.

Então, é quando vejo o condor voando com a asa quebrada. Ele voa baixo, mas voa. A gente dança, corre, bebe, anda, ri. Tudo um pouco. Grava logo, enquanto dura o fôlego e publica um reels. Conseguimos. Pequenos objetivos é o que almejamos, e se eles se tornam grandes, é preciso fracioná-los sabiamente. Mas também é preciso objetivar, olhar adiante, esticar o braço e tentar alcançar para dar o próximo passo e chegar lá. Só assim a vida não acaba em sua suposta metade, mas começa de uma outra forma, se ajustando e se amoldando às dores físicas e da alma.


04/08/2023

Serenatas às sextas-feiras

Em um tempo em que a música popular brasileira está quase sendo tratada como peça de museu onde haveria espaço para serenatas? A resposta imediata seria: não haveria. A boa notícia, no entanto, é que ainda temos uma sobrevivente em minha cidade. Segundo soube por meio dos que ainda apreciam a sua passagem pelas antigas ruas de Olinda, talvez não por muito tempo.

A verdade é que as gerações mais novas não cultivam o amor ao tipo de música que as serenatas propagam e nem mesmo ao seu estilo. Não que seja algo sem alegria ou ritmo, pelo contrário, mesmo nas interpretações mais nostálgicas há sempre o toque de empolgação. 

Seja no embalo dos instrumentos de corda ou na soma deles com um pouco de percussão, marcando e impulsionando a marcha dos que levam o melhor de nossas canções e os sentimentos que elas carregam.

Nos meus primeiros anos de juventude, muitas sextas-feiras foram regadas a serenatas. Foi um período em que já era certo a minha turma se encontrar no ponto onde os músicos se reuniam para seguir pelas velhas ruas da cidade histórica. Havia sempre os que acompanhavam e os que ficavam nas janelas dos casarões, esperando a nossa passagem. As palmas eram um incentivo e o combustível para rápidas paradas onde o morador era presenteado com uma música, por prestigiar tão calorosamente cantadores e tocadores.

O repertório era sempre atualizado com novas músicas e, ao contrário do que se pensa, nesse grupo não eram tocadas, a toda hora, músicas do tempo dos nossos pais e avós. Em geral, todos conheciam as letras e havia muitos jovens acompanhando e alguns tocando junto com os músicos mais antigos. O gosto pela MPB era normal. Isso me faz perguntar em que momento perdemos o trem da história? A nossa música, que é um primor no mundo, foi ficando para trás e vivendo agora na memória de pessoas que estão envelhecendo e levarão consigo a perpetuação do que temos de melhor.

Moro perto de algumas casas de festa e, às vezes, escuto as músicas que tocam nos eventos que acontecem nesses lugares. Em quase nem um deles não se ouvem mais composições dos nossos artistas mais talentosos, mesmo os novos que têm surgido. Hoje, tenho a sensação de que existe um repertório de músicas sem qualidade onde uma copia a outra e também nem é preciso que as letras digam algo. São sons iguais. Em cada estilo, há uma receita que todos seguem. Não se pode dizer que existe ali um primor nas letras ou nas melodias. E as novas gerações adotaram essa preferência como algo natural, então não se espera mais do que isso.

Em um contexto como esse é preciso aceitar que o antigo grupo das serenatas semanais, provavelmente, está com os dias contados. Segundo soube, o público quase inexiste e o os músicos estão perdendo o apoio para permanecerem mantendo viva a cultura da nossa música, daquilo que nossos grandes artistas construíram com talento, arte e muito trabalho. Não com intenções massificadoras, mas, sim, para tocar as pessoas de alguma forma, seja por meio dos acordes ou pela palavra que diz algo ao coração, à mente ou a ambos.

Ainda bem que tenho a memória desses momentos tão mágicos e únicos. Para quem acha que serenata é tocar ou cantar canções de amor embaixo de uma janela, é importante saber que é mais que isso e é também isso. Afinal, cantávamos em frente aos janelões dos moradores, porém não tínhamos intenções de conquistas e, sim, de compartilhar aquelas belas e inesquecíveis canções e passagens de nossas vidas. Havia felicidade em cada rosto. Éramos felizes a cada nova sexta-feira. E sabíamos disso.

03/06/2023

A morte de uma delicatessen

Foto: petr-sevcovic

Ela nasceu com cinco estrelas, toda de vidro, com diversos espaços atrativos, até mesmo um pequeno e aconchegante bar em um piso superior equipado com uma adega comandada por um especialista. Maitre fardado, espaço gourmet, queijos especiais, comida pronta congelada, bolos, salgados, biscoitos importados, cafeteria, self-service de almoço e jantar, forno à lenha para pizza preparada na hora e dezenas de funcionários para fazer essa grande máquina funcionar. Lá, nos primeiros meses de vida, a delícia era fazer um happy hour na adega. Podíamos até variar, passeando por outras bebidas, porque havia também. Assim como havia uma agradável música ambiente e comidinhas para fazer felizes os que esticavam a noite naquele recanto.

Um dia, marcamos com um casal de amigos que, conhecedores da fama daquela que já chegou “chegando”, logo se empolgaram com o convite. Aquela foi uma noite regada a vinhos, fazendo jus a um espaço acessado por um elevador panorâmico que já dava as boas-vindas ao cliente. Ainda bem que aproveitamos a sua breve vida. Mas se queríamos tomar um cafezinho com um salgado numa tarde de sábado, era lá que matávamos o nosso desejo. Assim como quando queríamos apenas comer uma saborosa pizza, era só andar dois quarteirões e lá estava um lugar com lindas mesas com cadeiras amarelas, e uma garçonete toda tatuada e risonha que se divertia com as brincadeiras do meu marido.

Em um natal, os donos colocaram um grande boneco de papai Noel que ficava dançando e tocando uma mesma música do tema. Quem se sentava perto, rapidamente se cansava daquela repetição sem fim. Quando isso ocorria conosco, chamávamos a risonha garçonete e entre piadas e apelos, perguntávamos se dava para desligar o enjoado dublê de caixa de música natalina. Como já estava familiarizada conosco, para o seu próprio alívio, desligava o famigerado, justificando aos colegas que fazia aquilo a pedido de um cliente.

Então, quando já havíamos incorporado a existência daquela delicatessen às nossas vidas, estranhamente começamos a perceber a redução de mercadorias e funcionários em uma velocidade impensável. O primeiro serviço encerrado foi do andar superior. Logo começaram a esvaziar as prateleiras, em seguida, os itens de lanche. O espaço para jantar cessou as atividades e logo depois, o self-service. Os clientes desapareceram, porque já não havia motivação para frequentar o local. Nos últimos suspiros o que ainda conseguia oferecer era vinhos e outras bebidas a bons preços, alguns salgadinhos em potes e os biscoitos importados. Era o fundo do poço de um negócio que começou transbordando sucesso com um grande e fiel público.

A explicação: divórcio não consensual dos donos. Um casal que jogou todas as suas diferenças no negócio e o arruinou como parte de um rompimento litigioso. Eles não dividiram. E a intenção da parte responsável pela administração da delicatessen era sangrá-la até a morte a fim de atingir o outro lado. Um enredo típico de uma novela mexicana. E nós, onde estávamos nessa história? Em lugar nenhum. Ou, para ser mais exata, assistindo a tudo como meros espectadores até que a plateia esvaziasse.


04/05/2023

MInha estranha imagem

www.pt.vecteezy.com

Você já viveu a experiência de se olhar no espelho, ver outra pessoa e, na sequência, tomar um susto como se estivesse com um pé em um filme de terror? Se sim, provavelmente, o motivo não deve ter sido dos melhores. E foi o que aconteceu comigo após uma cirurgia para retirada dos quatro sisos.  

Por ser uma paciente com problema de disfunção na mandíbula, foi necessário fazer o procedimento com anestesia geral. Sendo assim, a justificativa foi de que o ideal seria aproveitar a sedação e extrair todos de uma só vez, evitando maiores riscos e sofrimentos adicionais. É claro que não fui a primeira nem a última a passar por isso, mas…

A cirurgia foi realizada em um início de noite. Após ficar na sala de recuperação por um tempo que me deixou ansiosa, fui levada para o quarto onde dormi, devido à medicação. Ao acordar, pedi para ser levada ao banheiro e foi nessa hora que me deparei com um ser estranho diante do espelho. Havia uma coisa borrachuda sobre a minha cabeça, que descia pelas laterais. Quase perdi os sentidos, ao ver aquela imagem chocante que, na verdade, eram duas luvas cheias de gelo amarradas ao redor do rosto inchado.  Porém, tentei me convencer de que rapidamente aquele aspecto se desfaria assim como as incômodas e extremas dormências na língua e regiões próximas. Entretanto, logo fui alertada pelo médico de que levaria alguns meses para recuperar essa parte. Tamanho foi o impacto daquela revelação que não pude conter as lágrimas. Não sabia como poderia conviver com aquilo e só o tempo traria a força necessária para transpor a fase nebulosa de recuperação que viria.

Nesse mesmo dia, fui para casa. Sem as bolsas de gelo, decidi avaliar melhor todo o inchaço. As pequenas modificações em cada centímetro da face simplesmente haviam me transformado em uma estranha.  Mesmo sabendo que era um estado passageiro, não conseguia me desvencilhar da sensação de que aquele rosto não me pertencia. Resolvi evitar o espelho porque àquela altura era mais um fator para agravar o difícil restabelecimento desse tipo de cirurgia. Seu pós-operatório estende os efeitos por meses, afetando até mesmo o estado psicológico pelas inesperadas dificuldades a serem superadas, um cenário propositadamente omitido pelo dentista. Segundo ele, se eu soubesse o que viria, não teria aceitado embarcar nessa jornada.

Quando eu achava que o meu aspecto não causaria mais impactos, dois dias após a volta para casa, revivi aquele inesperado sentimento de estranheza. Foi quando precisei começar a tomar injeções como parte do tratamento para a recuperação. Na ocasião, a minha irmã me levaria até um farmacêutico. Como a sua filha de sete anos não tinha com quem ficar, iria conosco. Mas  grande foi o assombro da pequena ao olhar para mim. Ficou tão assustada que abraçou-se à mãe, tapando a própria visão. Nessa hora, tive a certeza de que meu rosto era mesmo um desconhecido.

Os efeitos, entretanto, não pararam por aí. Depois daquela deformação se desfazer, segundo o cirurgião, o sangue que não aflorou durante a extração dos sisos, mostrou-se nos dias seguintes. Em forma de manchas arroxeadas, espalhou-se pela face e por gravidade desceu até o pescoço, concentrando-se nessa região. Quinze dias depois, além das dores que ainda me afligiam, chamava atenção aquela reação exagerada do meu organismo aos traumas subsequentes à  intervenção dentária. Algo inédito até para meu médico com experiência de longa data. Fui um caso que ele fez questão de mostrar a alguns alunos e a outros dentistas. O aspecto de quem havia sofrido um acidente saltava aos olhos, pois a minha sensibilidade ante o procedimento não era comum.

Das experiências inusitadas que já vivi, essa foi uma das mais raras. Perceber as pessoas me olhando na rua de forma curiosa e, provavelmente, cogitando vários motivos de uma mulher estar com o rosto aparentemente todo machucado, me causou um sentimento incomum. Ainda hoje carrego uma pequena sequela física por um nervo ter sido parcialmente afetado. Dois anos depois, ainda fazia fisioterapia para diminuir uma parestesia próxima ao queixo. Quando penso na longa trajetória pós-operatória, me pergunto se teria tido coragem de entrar nessa empreitada se soubesse dos verdadeiros riscos e consequências. É possível que, com a falta de alternativa, a aceitação fosse inevitável. Mas também creio que, dificilmente, algum profissional da área revelasse a um paciente todos os pormenores do que lhe aguardaria nesse contexto.

07/04/2023

O sapateiro surtado

 

Foto: Ryan Snaadt

Nem sempre por ser tempo de Natal os espíritos ficam apaziguados. Isso pode até ser motivo para recrudescer os sentimentos a ponto de se tornarem opostos ao que se espera nessa época. Pode até parecer uma contradição, e não deixa de ser, mas ao mesmo tempo faz sentido, quando essa data traz consigo pressões ou situações acima do limite de quem as vive. Nunca havia pensado sob esse ângulo até o dia em que pedi ao meu marido para ir buscar um par de sapatos que havia levado para consertar.

Estávamos a duas semanas do Natal, quando levei os sapatos para serem reparados. Havia tempo de sobra e a previsão era de o sapateiro entregá-los três dias depois. Resolvi esperar oito dias, dando-lhe mais tempo para terminar o serviço. Ainda faltava o mesmo período para as festas, quando meu marido, que já era um cliente habitual do sapateiro, foi buscá-los. Ao chegar lá, tamanho foi o susto ao ser recebido como um estranho e ser questionado por estar indo pegar um par de sapatos de mulher. Fora de si, além de se revoltar com o cliente, aproveitou para xingar as pessoas que levaram sapatos perto do Natal e queriam que ficassem prontos a tempo. Revirou seu espaço de trabalho. Como não localizou meus sapatos, ficou ainda mais enfurecido, e mandou meu marido me dizer que fosse a uma outra sapataria comprar um sapato novo.

Ao tomar conhecimento do ocorrido, a princípio, fiquei sem saber o que pensar, considerando que já havíamos nos utilizado tantas vezes dos serviços daquela pessoa. Entretanto, após pensar e repensar sobre a possibilidade de ser um caso de uso de drogas (uma hipótese real), passei a admitir a ideia de que foi um caso de surto de alguém que se sobrecarregou com trabalhos, dos quais não poderia dar conta. Além disso, quando percebeu que era extremamente desorganizado, decidiu lançar a culpa sobre os clientes.

O Natal costuma fazer bem para a maioria das pessoas e isso é fato. No entanto, existem sempre aqueles que não enxergam as oportunidades desse momento e, ao invés de luz, encontram a escuridão. Em geral, isso acontece quando esse contexto traz consigo algum tipo de peso. Assim como algumas pessoas entram em conflito consigo mesmas pelas reflexões que fazem, quando chega o final do ano, existem as que chegam a se desesperar por se aperceberem da condição em que se encontram.

Creio que o sapateiro caiu em sombras e naquele momento, tudo o que viu foram nuvens de fumaça. Deixei passar as festas de final de ano e voltei à sapataria. Calmo e restabelecido, com a minha ajuda, encontrou meus sapatos, consertando-os na mesma hora. Disse-lhe que iria tomar um café em uma padaria próxima dali para deixá-lo à vontade. Quando retornei, o serviço estava terminado. Sem fazer referência ao desatino passado, paguei, agradeci e cada um continuou seu caminho, dessa vez sem surtos ou traumas. É claro que meu marido vai precisar de um tempo para relevar os maus tratos que recebeu, e não sabemos se um dia voltaremos a usar os serviços dessa pessoa.


11/03/2023

Um passeio inusitado

 “Acorda, prima! Acorda! Tenho uma notícia que você vai adorar”. Era o meu primo me despertando em um dos dias em que, aos dezoito anos, estava passando férias na casa da minha tia na cidade do Rio de Janeiro, tão distante de casa como se estivesse em outro continente. Quando abri os olhos pela manhã, não poderia supor que o meu dia seria tão inusitado. Precisava levantar e acordar uma amiga que havia me acompanhado nessa viagem, a fim de nos prepararmos para o programa que nos aguardava e nem sabíamos.

Quando chegamos para nossas férias, logo soubemos que o vizinho, amigo dos meus tios, trabalhava na emissora Rede Globo. Como a minha amiga seria uma futura estudante de Comunicação, pensou na possibilidade de conhecermos os estúdios. Porém, após minha tia consultar o amigo, ele não achou que poderia conseguir uma visita no período em que estaríamos por lá. Com essa resposta, descartamos essa opção.

No entanto, imensa foi a nossa surpresa, quando o meu primo nos comunicou que o vizinho havia conseguido uma visita guiada para nós no horário da tarde, e que ele nos levaria assim que terminássemos de almoçar. Como havíamos dormido até tarde, precisávamos nos apressar, porque a viagem seria longa.

Nossa aventura já começou na ida. Tivemos que pegar dois ônibus até o Jardim Botânico e foi algo novo, porque sempre que saíamos alguém nos levava de carro. O primo nos deixou na entrada e foi aí que começou a magia. Logo na recepção vimos o Chico Anísio, do qual éramos fãs. Na sequência, fomos cumprimentadas pela atriz Regina Duarte, depois pela repórter Leilane Neubarth, e vimos o Cid Moreira, chegando para iniciar seus trabalhos. Quando começamos a visita, cruzamos com Francisco Cuoco, Suzana Vieira e Tássia Camargo, entre outros artistas. Ficamos eufóricas ao conhecer o set do Jornal Nacional, alguns cenários das novelas e um dos auditórios dos programas gravados com público. Saímos de lá sem acreditar naquela experiência para duas meninas tão jovens e anônimas. E quando estávamos na saída e achávamos que havia acabado, nos deparamos com a repórter Glória Maria. Rimos à toa. Quem acreditaria que estivemos ali?

Estávamos tão entusiasmadas que, só quando chegamos na parte de fora da empresa, nos demos conta de que meu primo havia nos deixado lá, achando que poderíamos voltar sozinhas. A princípio, ficamos paralisadas, porque estávamos muito longe do nosso ponto inicial e porque não havíamos imaginado que não haveria ninguém nos esperando. Como atravessaríamos aquela imensa cidade por nossa conta, decidimos fazer uma retrospectiva de como nos havíamos deslocado até lá. Conseguimos lembrar os números dos ônibus e o local onde os pegamos. Após o susto inicial, resolutas partimos de volta. Já era noite, quando chegamos, orgulhosas por termos conseguido chegar ao nosso destino sem problemas e felizes por termos estado tão perto de tantas celebridades.

Apesar de todo nosso entusiasmo, havia uma preocupação: será que a minha tia sabia que tínhamos sido deixadas naquele lugar completamente desconhecido para nós e segundo ela “no fim do mundo”? Soubemos a resposta na hora que dobramos a rua na qual ela morava. De longe já a vimos na calçada de casa, segundo meu tio “com a sobrancelha colada no topo da testa”, esperando por nós. Ela não sabia se ria ou se chorava. Estava emocionada de nos ver inteiras, ante a nossa aventura numa cidade com uma fama nada confortável, mesmo no final dos anos oitenta. Mas, ao mesmo tempo, se divertia com a nossa tranquilidade e alegria por aquele dia cheio de surpresas. Nos abraçamos para selar aquele momento de alívio, e entramos ansiosas para contar as façanhas daquela tarde, cuja lembrança ficou guardada no baú das nossas doces recordações.

04/02/2023

Flutuando em barcos e sonhos

"Como você gosta de um barco! Toda viagem tem que ter um passeio desse". Essa foi a frase que ouvi do meu marido quando chegamos de uma incursão pelo lago Llanquihue, tendo o vulcão Osorno como pano de fundo, em Puerto Varas, no Chile. E só depois desse simples desabafo que me apercebi de que isso era uma constante em meus roteiros de férias. A coisa ficou pior depois que perdemos um passeio em em um icônico rio, durante uma viagem, porque deixamos para o último dia, choveu e ficamos impossibilitados. Depois desse acontecimento, na tentativa de garantir a sua realização, passei a programar esses eventos com um cuidado adicional.

Não sou uma pessoa das mais corajosas, e isso faz com que, apesar dos inúmeros voos que já peguei, nunca me sinta totalmente confortável em um avião. Já com barco, tudo muda. Não sei o porquê, mas eles nunca me assustam, seja no mar ou em um rio. Adoro ver a água correr ao seu lado, a sensação do vento no rosto e o rastro deixado no caminho que vai ficando para trás. E além disso, as diversas paisagens que vão surgindo nesse navegar. Tudo isso me seduz de uma forma impagável, inevitável.

São incontáveis as vezes que me aventurei nessas viagens flutuantes, gozando das mais diversas experiências. Dessas, algumas foram marcantes. Uma delas gosto de lembrar porque se tornou especial: percorrer um trecho do Rio São Francisco e, ao final, mergulhar nas águas desse lendário Nilo Brasileiro. A sensação foi a mesma de alcançar uma bela cascata depois de uma longa caminhada. Mas, nesse caso, a jornada também foi gloriosa porque a paisagem dos seus cânions impressionantes ficaria cravada em minha memória como a pérola desse momento: uma embarcação nos levando ao êxtase de uma comunhão com a natureza: céu, rio, montanhas e o afagar daquelas aguas frias e caudalosas roçando a pele. Por duas vezes protagonizei essa cena, porque é algo que se anseia repetir.

Mas a magia do velho Chico me levou a uma outra experiência. Dessa vez em um pequeno barco que por muitas vezes o observei junto a outros, ancorados sobre um cenário de águas tranquilas desenhando um espelho prateado. Nelas, montanhas refletiam como que deitadas em uma superfície perfeitamente lapidada. Naquela pequena espécie de canoa, seguimos o curso das correntes fluviais e conhecemos novos cenários. E por estar numa posição tão próxima daquelas águas, colocava minha mão fora e nos tocávamos enquanto deslizávamos rio abaixo. Ali aquele barquinho era tudo.

E para nunca esquecer das vezes que o admirei em seu descanso, o fotografei e o emoldurei para que em uma parede da minha casa ficasse ancorado. Ali ele servia de alento nos momentos em que desejava navegar com ele por outras águas. Era só olhar por um instante, fechar os olhos e seguir. E por um tempo fizemos muitos passeios imaginários até que aquela foto amarelada já não fizesse mais sentido ser levada para uma nova parede de um novo apartamento. Nesse, a visão do mar e de embarcações que chegam e partem de um porto não muito distante, traria infinitas possibilidades de me transportar através desse vai e vem em um porta-retratos vivo, despertando desejos de navegar.

14/01/2023