O dia de usar a louça favorita

Foto: Anni Lonko

Um dia em conversa com meu irmão, ele me relatou ter externado para a esposa a ideia de que, por ele, colocaria em uso os melhores pratos, tigelas e acessórios de cozinha. Não desejava guardar essas peças para utilizá-las apenas quando recebessem visitas especiais. E concluiu dizendo que a gente guarda o que tem de melhor e de repente morre sem usar. 

Essa era uma prática muito comum das antigas gerações e nossos pais também costumavam agir assim. Uma herança comportamental. É claro que meu irmão não compactuava com essa espécie de tradição e quis romper com esse hábito.

Não pude deixar de concordar quase que totalmente com essa renovação de pensamento. Porém, usar tudo de melhor, nem tanto, mas creio que não devemos guardar o que temos de bom. Isso é também uma forma de sentirmos prazer no dia a dia e valorizar o fruto das nossas conquistas. De que adianta obter coisas para mantê-las em uma redoma? 

Lá em um passado distante a minha sogra guardou por anos uma bebida para abrir quando o filho mais velho se formasse, entretanto no dia em que foi abrir a garrafa, haviam bebido. Ela caiu das nuvens e quase morreu de decepção. Uma casa com quatro homens que gostavam de beber não fazia ideia a quem culpar. Para mim, essa história retrata uma das faces do que é possível acontecer nesses contextos. Outro acontecimento foi o filho mais novo acidentalmente quebrar parte de uma louça que só saia da cristaleira em ocasiões especialíssimas. Foi uma tragédia.

É por essas e outras que comecei a acreditar na frase popular "quem tem seu vintém, bebe logo". E bebo logo minhas bebidas favoritas quando compro. Só guardo para uma ocasião, se for muito próxima. O mesmo faço com minhas roupas, sapatos, etc. Se amanhã eu não puder mais desfrutar dessas coisas, já usufrui. Minha vó costumava dizer que a gente morre e fica tudo para outros. Então hoje é o dia que vou usar minhas louças favoritas. Transformo pequenas comemorações em ocasiões especiais e aproveito para utilizá-las, e no mesmo ensejo bebo um vinho preferido ou coisa que o valha. 

 As vezes desconfiamos que devemos fazer certas coisas e nada como surgir alguém para nos levar a refletir e confirmar as nossas desconfianças ou mudar nosso pensamento. Aquela observação do meu irmão me fez ter ainda mais certeza do que intuía a respeito dessa temática. Colocar em prática essa crença me fez sentir que ela era só parte de algo maior. Então se estamos aqui de passagem e o nosso tempo é curto, melhor vivê-lo comungando de pequenas celebrações por cada etapa vencida e no nosso melhor estilo.

08/12/2022

Amores Platônicos

Foto: Filipe Almeida

James era um solteirão aparentemente convicto que vivia se apaixonando e desapaixonando ao sabor dos ventos. E em meio a uma dessas ondas, ele chegara mais uma vez ao trabalho ansioso por encontrar aquela que seria o motivo dos seus devaneios atuais, uma bela jovem que por estar comprometida, não o olhava de outra forma, a não ser como um bom colega de trabalho, amigo, gentil, mas não mais do que isso. Naquele dia, como em todos os outros, ele procurava encontrar uma maneira de ajudá-la em qualquer coisa que fosse apenas para estar perto dela e assim nutrir seus sentimentos ocultos. Era quase hora do almoço, quando ele aproveitou que estava na sala da sua amada e decidiu convidá-la para almoçarem juntos, convite que ela prontamente aceitou, pois apreciava a boa companhia do colega. Enquanto almoçavam, ela comentou que estaria sem carro para retornar do trabalho, pois o mesmo estava na revisão. James, impulsionado pelos seus sentimentos, prontamente se ofereceu para deixá-la em casa após o expediente. Apesar de ficar um pouco constrangida com aquela gentileza, decidiu aceitar a carona, e ao encerrar o expediente, conforme combinado, ele a levou em casa e despediu-se feliz pela sua empreitada.

No dia seguinte ao chegar ao escritório, procurou seu melhor amigo e contou-lhe sobre o seu dia anterior com a amada, sempre querendo parecer em suas narrativas um simples colega de trabalho. Mas como o amigo já conhecia bem as “paixonites” do outro, ao terminar de ouvir toda aquela história, um tanto quanto familiar, já foi dando seu diagnóstico. Uma constatação que fez James esboçar seu velho sorriso de disfarce, para primeiro negar sem nenhuma convicção as teorias do amigo e em seguida confessar seus sentimentos, afinal estava mais uma vez apaixonado.

E o tempo foi passando, e cada oportunidade de agradar sua amada era aproveitada. Ela já estava começando a desconfiar daquelas inúmeras gentilezas, como presente no dia do seu aniversário, favores, etc. Mas ele nunca ultrapassava os limites ou dava alguma direta ou mesmo indireta, discrição era o seu lema. Seu amigo conhecendo-o bem, sempre o alertava, pois aquele “cão” tinha dono, embora desconfiasse que se tratava de mais uma das paixões platônicas do amigo.

Por ironia do destino, algum tempo depois, eis que a pretendida de James estava livre e desimpedida, criando uma oportunidade de aproximação. No entanto, neste momento, diante da possibilidade real de ficar com aquela que povoava os seus sonhos todos os dias, ele começa a examinar todos aspectos possíveis e imaginários, ligados a uma potencial união entre os dois. Afinal, era da sua personalidade estudar meticulosamente e calcular cada passo dado na sua vida, sendo esta apenas mais uma situação a ser estudada.

Lúcia, aquela por quem suspirava, como estava vulnerável após uma recente separação e encontrava no amigo uma atenção especial, começou a pensar também na possibilidade de se aproximar dele. E a coisa começou a parecer real. O amigo de James percebendo então que havia um cenário favorável para o nascimento de uma relacionamento concreto, começou a questioná-lo sobre o futuro desta relação. Porém o suposto apaixonado se utilizando de sua capacidade de racionalidade diante das situações da vida, começava a expor para o amigo possíveis motivos para não ficar com Lúcia, a começar pela diferença de idade, que segundo seus cálculos, em 10 anos ele seria quase um velho e ela estaria na flor da idade, bonita e cheia de vida, criando um risco futuro. O amigo simplesmente não acreditava no que ouvia, mas de certa forma compreendia. Afinal de contas, amores platônicos não se concretizam.

E como o rio sempre corre para o mar, Lúcia começa a dar suas primeiras investidas e James suas primeiras recuadas. Até que ela começa a estranhar a atitude do colega e a achar que tudo não passava de imaginação da sua cabeça e que na verdade havia apenas um sentimento de amizade por trás de toda aquela gentileza. Porém, num momento de coragem e decidida a enfrentar o tudo ou nada, ela decide perguntar objetivamente se ele tem algum interesse por ela, ou se tudo não passou de um engano, fruto de um coração, por um lado partido, mas por outro confortado por tantas atenções. Neste momento, surpreendido, aturdido e ao mesmo tempo desencorajado, ele apenas disfarça, como se tudo aquilo não passasse, de fato, de um engano. Em seguida, lamenta por ela ter pensado diferente e faz um belo e esfarrapado discurso sobre a sua dedicada amizade, negando aquela oportunidade a si mesmo, porque na sua complexa e meticulosa cabeça, só era bom enquanto não era real.

20/11/2022

O açúcar da nossa terra


Pintura: Zé Som
É comum ver pessoas cantando a saudade de sua terra quando está longe. Vi isso surgindo muitas vezes dos que se foram cedo de uma terra que um dia conheci. Depois disso, entendi o porquê de quem se vai dizer que ela é de açúcar, uma doçura que só a falta aflora o paladar. Um sabor que só pode ser  sentido por quem não a pode ter ao alcance das mãos.

Por um estranho fenômeno no qual a explicação pode estar em uma outra encarnação, nunca consegui me sentir pertencente ao lugar que nasci e vivo e, portanto, não experimentei o doce da ausência. Admiro quem ama suas raízes e faz dela seu pilar, seu lugar. Depois de muito andar por aí, passei a desconfiar onde gostaria de estar e tenho a esperança de um dia aportar por lá. Quem sabe consigo encontrar a sensação de pertencimento que todos precisamos ter.

Mas como a vida dá muitas voltas, a recente discriminação contra as pessoas da região onde nasci, me fez vivenciar e perceber a beleza de estar onde estou e me orgulhar. É nessas horas que nos unimos e nos tornamos mais fortes. E os que pensam que irão nos destruir pelo preconceito ou por uma suposta diminuição do que somos, nos faz maiores, verdadeiros gigantes. Hoje ainda mais determinados em nossos propósitos e preparados para resistir, estamos tendo a oportunidade de mostrar o que temos de melhor e, por outro lado, expor a fraqueza dos que tentam nos encolher.

E foi por isso que não precisei estar longe para vislumbrar o lado açucarado da minha terra. Já que o inesperado traz consigo o não calculado, de forma inusitada fui assolada por um sentimento de estar ligada ao chão onde nasci, do valor dos que habitam esse solo, do que podemos ser e fazer. Só sinto as pessoas não se aperceberem de que se nos uníssemos e fôssemos mais independentes, poderíamos crescer e chegar até onde nossos pés pudessem nos levar.

Pensando bem, é possível que o problema da minha sensação de não ser do meu lugar é porque gostaria de vê-lo ser muito mais do que é e isso não acontece. Talvez o sonho que não se realiza de uma prosperidade travada pelos que nos subjugam seja a pedra no caminho, o que não me traz a plenitude de ser de onde sou. Quero crer que um dia enfim, as pedras serão varridas; que a nossa grandeza tomará o seu lugar e que eu possa sentir dentro de mim o pulsar das minhas origens, o reencontro definitivo com minhas raízes.





Lembrancinhas de viagem

Foto: Jametlene Reskp

Gosto muito de viajar e inevitavelmente de comprar lembrancinhas do lugar que fui conhecer. É quase uma lei adquirir aquele objeto que vai manter a memória de mais um lugar desbravado. Não há como não trazer no mínimo um ímã de geladeira, e a essa altura da vida já são tantos que a porta do congelador já não tem mais nem um centímetro disponível para mais um.

É interessante como a gente se apega a esse tipo de coisa e algumas vezes se pudéssemos trazer um pedaço do lugar que gostamos dentro da mala, assim o faríamos. Alguns lugares são especialistas em criar esses artigos que deixam os turistas totalmente encantados, e não há como resistir, afinal é disso que muitos vivem nos locais turísticos. Muitas vezes travamos uma batalha com os vendedores para conseguir um preço mais justo, mas geralmente não abrimos mão de obter aquele item especial, que parece não podermos admitir a possibilidade de voltar para casa sem ele.

Hoje, após tantas viagens e dúzias de lembrancinhas, começo a repensar sobre a questão. Não que seja algo tão sério que não possa mais fazer, ou me arrepender das que já trouxe em minhas andanças, mas penso que poderia ter comprado menos. Se estamos vivendo um momento de maior consciência de consumo é justo reavaliar também este comportamento, que a princípio parece inofensivo, mas na realidade alimenta uma sede de gastar com algo que não precisamos ter. Se pararmos para pensar, as milhares de fotos que tiramos hoje com a facilidade das câmeras nos celulares já são suficientes e, um exagero para guardarmos as recordações de onde passamos.

Outro dia estava lendo um livro da escritora Martha Medeiros onde ela narrava uma série de viagens que fez a vários países, e mencionou o assunto dos souvenirs, porque assim como a grande maioria das pessoas, ela também costumava adquiri-los por onde passava. Foi assim até que o dia em que teve um forte sentimento da não necessidade desse impulso e concluiu que outras fontes de recordação lhe bastavam. Penso que estou entrando nessa “vibe”. É claro que isso exige uma certa maturidade ou consciência e não sei se chegarei lá, mas tenho começado a me policiar a respeito e tentado ao menos diminuir a minha cota para um por cidade. Parece suficiente até que consiga assimilar a ideia de guardar o registro de onde andei em fotos e na memória, que são os melhores lugares para isso.

Racionalizar também pode ser uma saída, ou seja, comprar algo que estejamos precisando ou que consumiremos ao invés de acumularmos, como uma bebida ou comida. Garanto que é sempre muito prazeroso relembrar um lugar através do paladar. Mas como costumam dizer os entendidos, é um processo e cada um tem o seu. Hoje reavaliando a questão, coloco meus souvenirs na conta dodespertamento” dessa consciência acerca do consumo, e espero fazer progressos e estimular outras reflexões na mesma linha. Afinal é das pequenas coisas que chegamos às grandes.

11/09/2022

Cantinho do café

Durante a maior parte da minha vida não fui uma consumidora de café, mesmo tendo aprendido a prepará-lo muito jovem, pois minha mãe e minha avó, que morava com a minha família, eram bebedoras contumazes. Eram várias xícaras grandes por dia, e quando eu fazia já deixava uma garrafa térmica cheia só para as duas. Estranhamente esse costume não se estendeu aos outros moradores da casa, nem mesmo pela genética. Minha mãe era tão condicionada ao café que em um determinado momento da vida, quando resolveu diminuir o seu consumo drasticamente passou tão mal que foi diagnosticada com crise de abstinência, o que foi suficiente para que ela modificasse seus planos de frear o vício relacionado ao café.

Muitos anos se passaram até o dia em que comecei a achar que seria uma boa ideia tomar um cafezinho no meu trabalho para cortar o cansaço, o que fiz de forma comedida em razão de uma labirintite. Mas, como esta bebida tem sua magia, as poucas paradas para uma leve saboreada, mesmo misturada ao leite, já eram suficientes para dar aquela sensação de prazer que aquece a alma. E pouco a pouco fui expandindo meu ambiente exclusivo de consumo de café, do trabalho para as cafeterias.

Com a possibilidade de experimentar outros sabores dessa bebida, descobri então que cafeterias são cantinhos dos deuses. Se existe um lugar agradável, esse é um forte candidato. Não sei se acontece de outras pessoas pensarem da mesma forma, creio que sim, porque não deve ser à toa que esse espaço tornou-se uma febre mundial. Alguns são tão adequadamente decorados que influenciam na nossa experiência de saborear essa bebida, que é a segunda mais consumida no mundo. Especialistas no assunto dizem que tudo que nos cerca influencia o paladar no momento em que estamos ingerindo ou degustando um café, e não somente o nosso estado de espírito como também o ambiente em que estamos inseridos, incluindo as cores envolvidas. Isso explica a preocupação das cafeterias com o seu aspecto.

Mas quando a gente começa a se encantar com essa bebida não tem jeito, daí a querer estar com ela sempre ao nosso alcance é praticamente um caminho inevitável. E foi imbuída desse sentimento que criei na minha casa o cantinho do café, pequeno e simples, mas com todas as opções para a sua preparação. Além do principal ingrediente, o café, e os recipientes para o seu consumo, as xícaras. Hoje sou uma apreciadora com moderação, diferente da minha mãe e avó, que não viveram para conhecer as máquinas de café e as cafeterias. Sou daquelas que vê na junção café com bolo ou pão de queijo, a fórmula mágica do aconchego e pra completar, só falta uma boa conversa. E aí, vai um café?

 

10/08/2022