MInha estranha imagem

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Você já viveu a experiência de se olhar no espelho, ver outra pessoa e, na sequência, tomar um susto como se estivesse com um pé em um filme de terror? Se sim, provavelmente, o motivo não deve ter sido dos melhores. E foi o que aconteceu comigo após uma cirurgia para retirada dos quatro sisos.  

Por ser uma paciente com problema de disfunção na mandíbula, foi necessário fazer o procedimento com anestesia geral. Sendo assim, a justificativa foi de que o ideal seria aproveitar a sedação e extrair todos de uma só vez, evitando maiores riscos e sofrimentos adicionais. É claro que não fui a primeira nem a última a passar por isso, mas…

A cirurgia foi realizada em um início de noite. Após ficar na sala de recuperação por um tempo que me deixou ansiosa, fui levada para o quarto onde dormi, devido à medicação. Ao acordar, pedi para ser levada ao banheiro e foi nessa hora que me deparei com um ser estranho diante do espelho. Havia uma coisa borrachuda sobre a minha cabeça, que descia pelas laterais. Quase perdi os sentidos, ao ver aquela imagem chocante que, na verdade, eram duas luvas cheias de gelo amarradas ao redor do rosto inchado.  Porém, tentei me convencer de que rapidamente aquele aspecto se desfaria assim como as incômodas e extremas dormências na língua e regiões próximas. Entretanto, logo fui alertada pelo médico de que levaria alguns meses para recuperar essa parte. Tamanho foi o impacto daquela revelação que não pude conter as lágrimas. Não sabia como poderia conviver com aquilo e só o tempo traria a força necessária para transpor a fase nebulosa de recuperação que viria.

Nesse mesmo dia, fui para casa. Sem as bolsas de gelo, decidi avaliar melhor todo o inchaço. As pequenas modificações em cada centímetro da face simplesmente haviam me transformado em uma estranha.  Mesmo sabendo que era um estado passageiro, não conseguia me desvencilhar da sensação de que aquele rosto não me pertencia. Resolvi evitar o espelho porque àquela altura era mais um fator para agravar o difícil restabelecimento desse tipo de cirurgia. Seu pós-operatório estende os efeitos por meses, afetando até mesmo o estado psicológico pelas inesperadas dificuldades a serem superadas, um cenário propositadamente omitido pelo dentista. Segundo ele, se eu soubesse o que viria, não teria aceitado embarcar nessa jornada.

Quando eu achava que o meu aspecto não causaria mais impactos, dois dias após a volta para casa, revivi aquele inesperado sentimento de estranheza. Foi quando precisei começar a tomar injeções como parte do tratamento para a recuperação. Na ocasião, a minha irmã me levaria até um farmacêutico. Como a sua filha de sete anos não tinha com quem ficar, iria conosco. Mas  grande foi o assombro da pequena ao olhar para mim. Ficou tão assustada que abraçou-se à mãe, tapando a própria visão. Nessa hora, tive a certeza de que meu rosto era mesmo um desconhecido.

Os efeitos, entretanto, não pararam por aí. Depois daquela deformação se desfazer, segundo o cirurgião, o sangue que não aflorou durante a extração dos sisos, mostrou-se nos dias seguintes. Em forma de manchas arroxeadas, espalhou-se pela face e por gravidade desceu até o pescoço, concentrando-se nessa região. Quinze dias depois, além das dores que ainda me afligiam, chamava atenção aquela reação exagerada do meu organismo aos traumas subsequentes à  intervenção dentária. Algo inédito até para meu médico com experiência de longa data. Fui um caso que ele fez questão de mostrar a alguns alunos e a outros dentistas. O aspecto de quem havia sofrido um acidente saltava aos olhos, pois a minha sensibilidade ante o procedimento não era comum.

Das experiências inusitadas que já vivi, essa foi uma das mais raras. Perceber as pessoas me olhando na rua de forma curiosa e, provavelmente, cogitando vários motivos de uma mulher estar com o rosto aparentemente todo machucado, me causou um sentimento incomum. Ainda hoje carrego uma pequena sequela física por um nervo ter sido parcialmente afetado. Dois anos depois, ainda fazia fisioterapia para diminuir uma parestesia próxima ao queixo. Quando penso na longa trajetória pós-operatória, me pergunto se teria tido coragem de entrar nessa empreitada se soubesse dos verdadeiros riscos e consequências. É possível que, com a falta de alternativa, a aceitação fosse inevitável. Mas também creio que, dificilmente, algum profissional da área revelasse a um paciente todos os pormenores do que lhe aguardaria nesse contexto.

07/04/2023