Vindos da Itália

Normalmente não escrevo sobre minhas viagens, porém considerando o contexto atual de pandemia e o fato de ter saído do “olho do furacão”, fez com que algumas pessoas sugerissem que falasse a respeito, já que fatalmente fomos atingidos pelas consequências de estarmos saindo do epicentro do problema.

É possível que alguns indaguem sobre o que fomos fazer na Itália nos tempos do corona. Mas não havia como imaginar o que estaria por vir, quando saímos do Brasil e chegamos em Milão, afinal ao chegarmos lá, só havia um caso confirmado de uma pessoa internada com os sintomas. Em poucos dias as outras pessoas que este paciente contaminou, começaram a contaminar outras, e aí foi quando começamos a acompanhar de lá a evolução do contágio, víamos a cobertura da imprensa italiana e a do Brasil pela Internet.

Coincidentemente estávamos na região da Lombardia onde tudo começou, mas não estávamos perto das cidades atingidas, logo fomos pra a região de Veneto, onde seria a próxima a ter novos casos, mas também não era onde estávamos. Em seguida fomos para Florência, na Toscana, onde até então não havia casos. E por fim chegamos em Roma na nossa última etapa da viagem, onde também não havia nenhum caso inicialmente, até que soubemos que existia uma pessoa internada. A essa altura, já estávamos há 15 dias na Itália e os casos no norte já estavam completamente alarmantes e a imprensa do Brasil mostrava uma realidade que não chegamos a vivenciar, porque tivemos a sorte de encontrar os lugares ainda dentro de uma certa normalidade, estando fechados apenas alguns museus e igrejas, por precaução. O interessante foi que íamos publicando nossas fotos no Instagram, como se nada tivesse acontecendo e as pessoas sabendo das notícias, iam ficando abismadas e preocupadas conosco, pois não imaginávamos que a Itália estava se transformando rapidamente no epicentro da pandemia, nem ninguém nos passava a real imagem que o mundo estava vendo da Itália naquele momento.

Mas a normalidade começou a mudar depois que chegamos em Roma, durante os dois primeiros dias, começamos a tomar conhecimento do fechamento das cidades e das proibições de circulação entre elas, enquanto isso ainda estávamos fazendo nossos passeios, conforme programamos, A partir do terceiro dia as coisas começaram a mudar drasticamente e medidas mais duras começaram a ser tomadas e comunicadas pelo primeiro ministro italiano. Foi quando presenciamos as primeiras medidas para o distanciamento entre as pessoas e na sequência o início da quarentena dos romanos, foi uma sensação muito estranha, de repente não podíamos chegar perto das pessoas, no dia seguinte fecha quase tudo e as pessoas somem das ruas, logo o sentimento de turista deslumbrado se transformou numa sensação de isolamento e rejeição, porque diferente dos brasileiros, na hora que o governo diz que tem que manter um distanciamento, quando nos aproximamos de pessoas como caixas ou garçons, eles mesmos alertam: “não se aproximem!”. Aqueles que ainda andavam pelas ruas como nós, olhavam uns para os outros com um olhar de desconfiança, foi quando a maioria começou a usar máscaras nos locais fechados e nos transportes públicos, lugar onde era impossível manter a distância. Sorte que estava muito próximo do nosso retorno, tentamos antecipar nosso voo, mas não foi possível. Então tentamos manter a calma e aguardar o dia marcado para o nosso retorno, já que estava muito próximo.

Faltando um dia para a nossa volta ao Brasil, quando acordamos tivemos a surpresa de receber uma mensagem informando que o nosso voo de volta, que faria conexão em Amsterdam, havia sido cancelado. Ficamos desnorteados e começamos a imaginar o que poderia acontecer se não conseguíssemos outro voo. Entramos em contato com a Empresa aérea e pelo menos fomos informados de que eles dariam um jeito de retornarmos ao Brasil, nosso problema agora era quando. E a única forma de resolver seria indo ao Aeroporto no box da Companhia aérea, coisa que fizemos, mas não adiantou, porque estranhamente o cancelamento estava só no e-mail. Pelo sim e pelo não, resolvemos arrumar nossas malas e no dia seguinte voltar ao aeroporto a fim de conseguir um outro voo, pois a esta altura já havíamos sentido a gravidade da situação e vimos que precisávamos sair da Itália o quanto antes, pois quase nenhum país queria receber voos de lá. Foi aí que praticamente começou a nossa quarentena.

No box da Companhia aérea, soubemos que haviam recebido a confirmação do cancelamento do nosso voo, o que dava cobertura para que nos realocassem em outros voos, o que foi feito, porém isso nos custaria um dia inteiro no aeroporto de Roma e mais um dia de quarentena em um hotel em Paris, para depois viajar uma noite inteira chegar em São Paulo e pegar um outro avião pra casa. Por incrível que pareça, estávamos felizes por isso, porque vimos que muitos passageiros de outros países não conseguiram o mesmo, pois no dia em que saímos de Roma só o nosso voo para Paris não havia sido cancelado. Começamos a entrar numa nova vivência que nos levou a várias lições e, acho que essa foi a nossa primeira lição desse momento, pois toda a longa jornada da volta tornou-se curta diante do contexto em que nos encontrávamos, além é claro, de manter a calma numa situação tão adversa e inesperada.

Quando estávamos na longa espera pela volta, já nos demos conta de que teríamos que fazer uma quarentena, por ter estado no “olho do furacão”. E começamos a nos preparar psicologicamente para isso. Os primeiros casos estavam surgindo no Brasil, mas o medo dos que chegavam de lugares contaminados já era bem latente. Então ao chegar em casa, começou a nossa quarentena oficial, no dia em que chegamos, a síndica amedrontada mandou passar álcool no elevador e pouco tempo depois pediu que não andássemos nas dependências do prédio. Mesmo sabendo que ela estava correta, foi um choque para nós esta recepção, visto que precisávamos sair, já que nossa geladeira estava vazia e tínhamos necessidade urgente de comprar alimentos. Ficamos inicialmente desorientados, mas aos poucos fomos nos adaptando à situação. O temor da contaminação, levou um dos moradores a denunciar nossa chegada a Secretaria de Saúde do Município, fomos contatados para saber se estávamos seguindo a quarentena e nos deram orientações. Todos esses temores dos nossos vizinhos nos causou novamente um estranho sentimento de rejeição, tivemos que superar este sentimento e compreender o lado deles, já que a maioria são idosos, penso que esta foi a nossa segunda grande lição de toda esta situação. Mesmo nos sentindo vítimas, era necessário se colocar no lugar do outro, para entender e aceitar que possivelmente teríamos os mesmos temores se estivéssemos do outro lado. Quatorze dias depois, sair da quarentena de viagem e entrar na geral, nos provocou outros sentimentos que dia a dia estamos aprendendo a lidar e acho que esta é a terceira grande lição: aprender a ficar em casa, vivendo um dia de cada vez e todos os dias uma nova lição, um novo aprendizado.

26/04/2020

The day after

Uma das melhores coisas da vida é viver como se não houvesse amanhã, porém isso pode também transformar o nosso amanhã numa das piores coisas da vida. É mais uma das contradições humanas? Sim. Seria muito bom se nem tudo que fizéssemos tivesse consequências, mas até para as coisas prazerosas é assim, porque tudo demais é demasia, como costumava dizer a minha avó, e na diversão não é diferente. Sabe aquele aperitivo que você se delicia com ele mais do que deveria? Que você ultrapassa o limite que seu corpo suporta para no outro dia cobrar a conta? É disso que estou falando.

A gente sempre pensa que aquele carnaval, aquela festa ou aquela comemoração não seria a mesma coisa se fosse regado só a suco e refrigerante. E parece que não estamos completamente equivocados, tem seu sentido, afinal nem biblicamente grandes momentos foram comemorados só com água, haja visto a passagem da grande transformação de água em vinho. Um empurrãozinho na alegria não faz mal a ninguém, mas já um “safanão” condena a criatura a chorar a conta cobrada no dia seguinte. Muitas vezes no frescor da juventude nossos corpos até toleram uma alegria a mais, mas a medida que o tempo passa, a nossa antiga saúde etílica vai dando lugar ao fazedor de ressaca, e se desejamos que o dia de seguinte seja sempre cor de rosa, temos que brindar de acordo com os nossos limites.

Falando assim pode parecer que é só uma questão de idade. Acho que podemos dizer que é apenas uma meia verdade, porque a qualquer tempo, estamos sujeitos a sucumbir aos apelos da nossa mente após algumas doses e cair na tentação da viagem ao fundo do universo dos “sem censura”, o que na minha turma de juventude costumávamos chamar de viagem à outra galáxia. O grande problema desta “viagem” é o dia seguinte, quando por exemplo, se chega a ponto de pedir para morrer, coisa que pra mim era inimaginável até ver os anjos me circundando quando estive mergulhada na maior ressaca que me lembro de ter tido, em um dos não tão memoráveis carnavais que brinquei, pois após quase visitar o paraíso no primeiro dia de Momo, tive que me abster do pecado da gula etílica pelo resto do carnaval, com medo do fantasma do day after, afinal nunca se sabe quando um fígado, mesmo jovem, vai conseguir estar pronto para outra depois de um teste de resistência fora dos padrões e, eu não pretendia pagar para ver.

Apesar de nunca ter tido a sensação de estar caindo num abismo, como uma das ressacas que testemunhei, muitas outras rebordosas vieram e com elas a mais tradicional promessa dos bebinhos arrependidos: “não bebo nunca mais!”. Um conhecido costumava dizer durante seus days after que, “o homem que bebe é um cachorro” e muitas vezes nos meus days after também fui obrigada a concordar. Acho que isso é a uma das maiores provas de que muitas vezes, mesmo conhecendo o mal que nos espera, vamos ao seu encontro cheios de alegria. E assim foi e sempre será, não importa que o tempo passe ou que tenhamos a devida consciência, até que o nosso corpo nos obrigue a dizer “não!” ou pelo menos “chega!” e nos faça ir até onde realmente podemos ir, sempre nos perdoando quando a carne for fraca, mas o motivo for forte, afinal, nunca deixaremos de pensar que “viajar para outra galáxia” é muito bom, no entanto ver o dia seguinte nascer dourado, é ainda melhor.

PS: Isto não é uma apologia à bebida e continuo concordando com o colega quando ele dizia que “o homem que bebe é um cachorro”.

Abril/2020